sexta-feira, 20 de abril de 2012

“Da Serra do Doutor a Ilha do Flamengo”

– Uma Incursão pela Psicologia Ambiental do Rio Trairi



O Trairi é um rio integralmente potiguar. Principia na Serra do Doutor, em terras dos municípios de Campo Redondo e Coronel Ezequiel, banhando Santa Cruz, Tangará, Boa Saúde, Lagoa Salgada, Monte Alegre, São José do Mipibu e Nísia Floresta. Em direção ao litoral, forma as lagoas Papari e Papeba, desaguando no oceano atlântico através da Laguna de Guaraíras, entre os municípios de Tibau do Sul e Senador Georgino Avelino.

A imprecisão do local de suas nascentes se dá pela sua formação inicial ocorrer pela junção de uma malha dendrítica de pequenos riachos oriundos da Serra do Doutor, na fronteira dos municípios de Coronel Ezequiel e Campo Redondo, e possivelmente, da Serra de Picuí, no vizinho estado da Paraíba. Por essa razão, o pesquisador social Epitácio Andrade afirma “ser o Rio Trairi órfão de mãe”.

O poeta e cantador Hélio Crisanto, em seu livro “Retrato Sertanejo”, recita em versos o sofrimento do rio:
“Meu Rio Trairi, tu hoje agoniza/Em meio a dejetos, cimento e monturo/Ao invés de água, um óleo escuro/Percorre cansado, tecendo a divisa/O teu extermínio choca e barbariza/Quem te viu frondoso, limpo a vicejar/Mas hoje só resta a nós lamentar/Pois braços de lama abraçam seu leito/E o homem inclemente sem dó e respeito/Olhando a sujeira que corre pro mar”.
Talvez seja pela ocupação antrópica recitada pelo poeta, que o médico psiquiatra Epitácio Andrade afirme que “o Rio Trairi é filho de pai perverso”.

A toponímia vem da língua de suas primeiras populações ribeirinhas, os indígenas que nomeavam seus lugares em completa harmonia com a natureza. Do tupi-guarani, trairi é o rio das traíras, um peixe valente de águas doce, talvez o mais popular dos rios e lagoas brasileiros.

Foi no ano de 1981, que o pequeno gigante adormecido deu provas que estava vivo, e desceu veloz a Serra do Doutor, deixando um rastro de mortes e destruição a jusante, depois de romper a parede do Açude Mãe D’água, na zona rural do município de Campo Redondo.

A força da grande enchente do “Rio das Traíras”, em 1981, levou a ponte sobre seu leito, deixando o município de Campo Redondo isolado do restante do estado, que ficou sem energia elétrica por considerável período de tempo.

A agilidade do trabalho da telefonista Maria de Fátima da Silva foi superior a velocidade das águas da enxurrada do Rio Trairi, em 1º de abril de 1981. Vinte minutos após seu telefonema ao prefeito de Santa Cruz, comunicando a ruptura do Açude Mãe D’água, a cidade foi invadida pelas águas, mas foi um tempo suficiente para a população santa-cruzense ser evacuada e se evitasse uma tragédia maior provocada pela enchente que desceu a serra para destruir 1.044 casas.

A tragédia provocada pela enchente de 1981 deixou um cenário de destruição, semelhante a um campo de guerra, “anulando” a história residencial de centenas de famílias e marcando, definitivamente, o mapeamento mental dos ribeirinhos com fatores ansiogênicos relacionados ao comportamento fluvial do gigante de 20 léguas.

A força das águas do Rio Trairi em 1981 não encontrou obstáculos pela frente que não fosse levado em direção ao mar.

Em Tangará, a torrente de 1981 chegou avassaladora, lavando a parede do Açude Trairi, que conseguiu resistir.

Os fatores ansiogênicos associados ao Rio Trairi ficaram no mapeamento mental dos tangaraenses. Recentemente, uma situação coletiva pré-panicogênica esteve vinculada a possibilidade de ruptura do Açude Guarita nas cabeceiras do curso d’água.

A defesa civil foi acionada e foi feito o lonamento da parede do Açude Guarita que represa o Rio Trairi e se despede de Tangará para entrar no município de Boa Saúde, formando uma cachoeira.

Ainda no município de Tangará, capital do reino cigano, este grupamento étnico está inserido entre as populações ribeirinhas do Rio Trairi. Um acampamento do povo cigano com cerca de 15 famílias, totalizando em torno de 75 indivíduos, está precariamente montado a margem da BR-226. Sobrevivendo em condições de privação social, as ciganas sem acesso aos serviços de saúde realizam seus partos no próprio acampamento, fato que tem determinado o surgimento de deficiência mental em algumas crianças ciganas.

A prática da quiromancia (Leitura de mãos) foi amplamente divulgada pelo povo cigano e se constitui numa prática adivinhatória que compõe o universo místico desta coletividade.

Não é apenas na cultura cigana que se associa o comportamento com o misticismo. O escritor José Alaí de Souza, descrevendo a história do município de Boa Saúde, informa sobre lendas milagrosas de cura de doenças nos primeiros habitantes, a partir da utilização das águas do poço da pedra grande no Rio Trairi.

Alaí de Souza afirma também que no final do século XIX, retirantes da grande “seca dos dois sete”(1877), oriundos da região do Catolé do Rocha, no sertão paraibano, se fixaram na região da cachoeira do Rio Trairi, e passaram a ser conhecidos por essa alcunha, ou seja, “os cachoeiras”.



O Rio Trairi tem curso intermitente, que obedece ao regime pluvial. Vicejante no inverno e restrito a poços no verão. Esse caráter intermitente do rio parece favorecer uma ciclicidade no humor dos ribeirinhos. No inverno, a alegria das pescarias e dos banhos de rio. No verão, a tristeza da escassez d’água e a visibilidade maior da poluição.


Vídeo captado na internet
Pescaria no Rio Trairi
No período de estiagem, o Rio Trairi fica resumido a poços d’água que se estendem ao longo de seu leito e fica mais visível a poluição resultante da grande carga de esgotos domésticos que são despejados sem tratamento nas suas margens. Recentemente, foi denunciada uma grande mortandade de peixes produzida pelo despejo de esgotos domésticos em Santa Cruz.
A euforia dos banhos no inverno do Rio Trairi, algumas vezes é interrompida com a triste notícia de afogamentos, sobretudo de jovens.

Vídeo captado na internet
Descida/Banho no Rio Trairi em 2011.

Depois de Tangará, chegando a Boa Saúde, o Rio Trairi continua rasgando o cristalino rochoso e banha Lagoa Salgada. Coincidentemente, Lagoa Salgada é o município que primeiro sofre a escassez súbita d’água, quando a adutora Monsenhor Expedito, que drena água do complexo lacustre Bonfim-Guaraíras apresenta algum defeito, que sempre está relacionado à instabilidade geológica a partir da área de transição entre o cristalino e o sedimento costeiro.

A falta d’água na região agreste ocorre de forma aguda e no sertão é um problema crônico. As estratégias de enfrentamento do problema são diferentes nas duas regiões e a forma como resulta em alterações na saúde mental da população também é diferente. A resposta emocional a uma súbita falta d’água pode ser uma disforia e a cronicidade pode resultar em rebaixamento do humor.

É no município de Monte Alegre que o Rio Trairi vai “Deixar de bater em pedra dura”. Neste município passa a ocorrer a transição geológica do cristalino pré-cambriano para o sedimento costeiro. Surge um novo solo, o massapé, propício para a cana-de-açúcar, que passa a ocupar a paisagem e elimina a mata ciliar do rio. Historicamente, Monte Alegre foi lócus de produção de derivados da cana. Foi lá onde se instalou uma das primeiras almanjarras, grandes moendas de tração animal para extrair o caldo da cana, além de ser rota para o porto de Guarapes, em Macaíba.

Vídeo captado na internet
Cobra papa ovo no Rio Trairi

A modificação do cenário natural na região do Rio Trairi, a partir do município de Monte Alegre, tem acarretado mudanças na fauna e flora locais. As cobras passam a ocupar as plantações de gramíneas, como a cana-de-açúcar, que juntamente com outras espécies substituem a mata ciliar, contribuindo para o assoreamento do rio.

Vídeo captado na internet
Limpeza Ambiental do Rio Trairi

Na altura do município de São José de Mipibu, a mesma formação hidrográfica que dá origem ao rio começa a se redesenhar. Forma-se uma nova malha dendrítica com afluentes nas duas margens do Trairi. À direita estão o Rio Mipibu e o Araraí. À esquerda, o Rio Golandi, o Rio Baldum e o Rio Carnaúba.

Ao longo do Rio Trairi, observa-se a agressão de freqüência quotidiana produzida pelo lixo urbano, periurbano, rural e das rodovias das suas margens. Em Santa Cruz, a deposição de lixo doméstico e até hospitalar ocorre diretamente no leito. Em São José de Mipibu, ocorre nas margens da rodovia.

Inúmeras ruínas de chaminés e engenhos nas margens do Rio Trairi, a partir do município de Monte Alegre, passando por São José de Mipibu e Nísia Floresta, são lugares de memória do apogeu do ciclo do açúcar.
Adentrando na área de proteção ambiental Bonfim-Guaraíras, o Rio Trairi passa a ser recortado pela carcinicultura, com grandes viveiros de camarão, barrando e suas águas sendo bombeadas.

A lagoa de Papary no município que homenageia a feminista Nísia Floresta se comunica por canais com a lagoa do Papeba, em Senador Georgino Avelino, antes de formar a laguna de Guaraíras.


O processo de metropolização da grande Natal estende seus tentáculos até São José de Mipibu. “Mipibu”, em tupi-guarani, “que surge de repente”, é um rio que nasce na “Bica” e quatro kilômetros após deságua no Rio Trairi. Na Rua da Bica, os problemas da metrópole relacionados à delinqüência se estabeleceram interferindo no dia-a-dia dos comunitários.

As águas do Rio Trairi finalmente chegam a Laguna de Guaraíras, que fica encravada no entorno de quatro Municípios: Nísia Floresta, Senador Georgino Avelino, Arez e Tibau do Sul. Neste instante, o Rio Trairi passa a ser explorado turisticamente. Discute-se a formação de um consórcio de gestão da laguna entre os quatro municípios do entorno.

No caminho das Guaraíras, laguna e não lagoa, porque obedece ao fluxo das marés, um solitário baobá testemunha a passagem do rio e ratifica as raízes da negritude africana nesta região do litoral sul do Rio Grande do Norte. Um pouco mais a frente, na comunidade do Camucim-Patané, na zona rural de Arez, está localizado o terreiro de umbanda de Mãe Lourdes Nascimento, registrado na federação umbandista, desde 1993.

Extensos coqueirais entrecortados por culturas agrícolas temporárias também marcam as margens do Rio Trairi, nas proximidades de sua desembocadura.

A barra da Laguna de Guaraíras que se abre para o Oceano Atlântico, entre a Praia de Malembá, em Senador Georgino Avelino, e a orla de Tibau do Sul, próximo a Praia da Pipa, “a Piracema dos Tapuios”, está com uma extensão de quase 300 metros, constituindo-se numa grande área de erosão marinha.

É na parte oeste da Laguna de Guaraíras que se guarda importante passagem da vida histórica nacional. Na Ilha do Flamengo, no dia 06 de janeiro de 1648, três meses antes da grande batalha de Guararapes, os holandeses começaram a ser expulsos do Brasil, pela aliança formada por negros, índios e brancos nacionalistas.

A aliança entre Henrique Dias, liderando os negros, com Felipe Camarão liderando os indígenas, juntamente com os liderados da família Albuquerque, que resultou na expulsão do mais poderoso exército do mundo do século XVII, começou pela Ilha do Flamengo e marcou também o início da construção da identidade nacional. Tudo isso aconteceu sob o testemunho das águas do valente Rio das Traíras.

Avante! Salve! Salve!
Viva o Rio Trairi!









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