quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Aquela Dose de Amor (Antônio Francisco)


Um certo dia eu estava
Ao redor da minha aldeia
Atirando nas rolinhas,
Caçando rastros na areia,
Atrás de me divertir
Brincando com a vida alheia.

Eu andava mais na sombra
Devido ao sol muito quente,
Quando vi uma juriti
Bebendo numa vertente,
Atirei, ela voou,
Mas foi cair lá na frente.

Carreguei a espingarda,
Saí olhando pro chão,
Nos troncos do algodão,
Quando surgiu um velhinho
Com um taco de pão na mão.

O velho disse: - “Senhor,
Não quero lhe ofender,
Mas se está com tanta fome
E não tem o que comer,
Mate a fome com este pão,
Deixe este pássaro viver.”

Eu disse – Muito obrigado,
Pode guardar o seu pão...
Eu gasto mais do que isso
Com a minha munição.
Eu mato só por prazer,
Eu caço por diversão.

O velho disse: - “É normal
Esse orgulho do senhor
E todo esse egoísmo
Que tem no interior.
É porque falta no peito
Aquela dose de amor.

Se eu tivesse botado
Ela no seu coração,
Você jamais mataria
Um pardal sem precisão,
Nem dava um tiro num pato
Apenas por diversão.”
Eu fiquei muito confuso
Com as frases do ancião.
Aquelas suas palavras
Tocaram meu coração
Derrubando meu orgulho
E a minha vaidade no chão.

Me vali da humildade
E disse: - Perdão, senhor,
Desculpe a minha arrogância,
Mas lhe peço, por favor,
Que me conte essa história
Sobre essa dose de amor.

O velho disse: - “Pois não.
Vou explicar ao senhor.
Porque mesmo sem querer
Sou o maior causador
De hoje em dia o ser humano
Ser tão carente de amor.

Isso tudo aconteceu
Há muitos séculos atrás
Quando meu pai fez o mundo
Terra, mares, vegetais.
Me pediu pra lhe ajudar
No último dos animais.

Pai me disse – “Filho, eu fiz
Da formiga ao pelicano;
Botei veneno na cobra,
Bico grande no tucano,
Agora eu estou terminando
Este animal ser humano.

Mas ficou meio sem grala
Este animal predador...
O couro não deu pra nada,
A carne não tem sabor,
Na cabeça não tem juízo,
Mas, no peito, pouco amor.

Por isso que eu lhe chamei
Pra você lhe consertar,
Botar mais amor no peito,
Lhe ensinar a amar
E tirar dessa cabeça
O desejo de matar.”

Depois disse: - “Filho, vá
Amanhã lá no quintal,
Na casa dos sentimentos,
Perto do pote do mal...
Traga a dose de amor
E bote nesse animal.”

De manhã eu fui buscar
Aquela dose sozinho,
Mas na volta eu me entreti
Brincando com um passarinho.
Perdi a dose de amor
Numa curva do caminho.

Quando eu notei me perdi,
Voltei correndo pra trás,
Procurei por todo o canto,
Mas cadê eu achar mais.
Aí eu fiz a loucura
Que toda criança faz.

Voltei, peguei outra dose
Igualzinha ao do amor,
O vidro da mesma altura,
O rótulo da mesma cor...
Cheguei em casa e botei
No peito do predador.

Mas logo no outro dia
Meu pai sem querer deu fé
Do animal ser humano
Chutando um sapo com o pé
E no outro ele mangando
Dos olhos do caboré.

Vendo aquilo pai chorou,
Ficou triste, passou mal,
Me chamou e disse: - “Filho,
O bicho não ta normal.
O que foi que você fez
No peito desse animal?”

Quando contei a verdade
De tudo aquilo que eu fiz,
Pai disse tremendo a voz:
- “Eu sei que você não quis,
Mas você botou foi ódio
No peito desse infeliz.

Esse bicho inteligente
Com esse ódio profundo,
Com pouco amor nesse peito
Não vai parar um segundo
Enquanto não destruir
A última célula do mundo.”

Depois daquelas palavras,
Chorei como um santo chora.
Quando foi à meia-noite
Eu saí de porta afora
E nunca mais eu pisei
Na casa que meu pai mora.

Daquele dia pra cá,
É esta a minha pisada,
Procurando aquela dose
Em todo canto de estrada,
Pois, sem ela, o ser humano
Pra meu pai não vale nada.

Sem ela, vocês humanos
Não sabem dar sem pedir,
Viver sem hipocrisia,
Ficar por trás sem trair
Nem distante do poder
Nem discursar sem mentir.

Sem ela, vocês trucidam
E batizam os crimes seus
NA era medieval
Queimaram bruxas e ateus
E perseguiram os hereges
Usando o nome de Deus.

Sem ela, foram pra África
E fizeram a escravidão...
Com os grilhões do precinceito
Escravizaram o irmão
Com a espada na cintura
E uma Bíblia na mão.

O velho disse: - “Perdoe
Ter tomado o tempo seu.
Consertar vocês, humanos,
É um problema só meu.”
Aí o velo sumiu
Do jeito que apareceu.

Eu fiquei ali em pé
Coçando o queixo com a mão,
Pensando se era verdade
As frases do ancião
Ou se tudo era um fruto
Da minha imaginação.

E naquele mesmo instante
Vi passando na estrada
A juriti que eu chumbei
Com uma asa quebrada,
Não tive mais a coragem
De atirar na coitada.

Joguei fora a espingarda,
Voltei olhando pro chão
Procurando aquela dose
Nos troncos do algodão
Pra guardá-las com carinho
Dentro do meu coração.

Se acaso algum de vocês
Tiver a felicidade
De encontrar aquela dose,
Eu peço por caridade
Derrame todo o sabor
Daquela dose de amor
No peito da humanidade.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”