sábado, 10 de junho de 2017

Se eu morresse amanhã - Cecília Nascimento


Se eu morresse amanhã
Cecília Nascimento

Se eu morresse amanhã, viriam me prestigiar meu corpo inerte, num caixão que eu quisera azul, os meus alunos, aqueles que me amam e os que me ignoram trariam juntos condolências à minha família, relembrando os bons momentos que, julgariam eles, tivéssemos vivido juntos. Seguidas postagens chegariam ao meu Face, já desinstalado, com abundância de emojis e citações dos meus “feitos” pela educação que eu quisera possível. Nos grupos das turmas a mensagem que mais percorreria seria a da morte abrupta da sofressora, intercalada, é claro, por uma ou outra piadinha sem graça ou alguma corrente da vida...
Se eu morresse amanhã, minha família levaria a mão à cabeça tentando entender o porquê de tamanha tragédia. Pensaria com dedicação nas razões para minha vida ter sido ceifada tão brevemente sem compreender que meu sofrimento nada teve de breve e que desde a nascença já tinha sido fadada ao fim precoce, havendo lutado muito para prolongar o inadiável. Certamente, no hospital, minha mãe relembraria, tomando algum tarja preta, os muitos momentos que ali vivi com ela, quase sem ar, quase morrendo, quase melhorando, mas nunca me curando, quase internada, quase desistindo, quase lutando, quase vivendo, mas só agonizando.
Se eu morresse amanhã, os conhecidos e desconhecidos viriam tomar café no funeral e comentar que eu morei tantos anos nessa cidade e quase ninguém me conhecia. Seria necessário abrir o caixão várias vezes ou reparar na foto ao lado para tentar identificar quem foi essa mulher que partiu sem sequer deixar marcas de ter vindo. Espero que meu cabelo esteja bem vermelho na foto.
Se eu morresse amanhã, aqueles que guardam mágoas e de quem carrego nódoas no coração viriam visitar-me o cadáver, a fim de se certificarem de que seus problemas realmente tiveram fim, de que aquela vida não mais os perturbaria sequer com a lembrança da existência, pois já não mais havia. Problema resolvido, fato consumado, vida que segue, prazer disfarçado em pêsames e olhares desconfiados.
Se eu morresse amanhã, morreriam comigo todas as minhas saudades que hoje ainda em vida me fazem morrer um pouco por dia. E, juntamente com minha mala cheia de memórias, seriam enterradas as esperanças que eu alimentei até o último suspiro de que o tempo seria condolente comigo, me restituindo a alegria de viver.
Se eu morresse amanhã, os amores que tive viriam talvez visitar o corpo, pensariam, ao me ver, que não fui lá grande coisa e que melhor estão agora não apenas com outras pessoas, mas definitivamente sem mim, que de todas as experiências, as piores foram as que ficaram, que de todos os acertos, os erros foram os que marcaram, que de todas as iniciativas, minhas recusas foram a que foram lembradas, que de toda a dedicação, a minha partida foi a que foi considerada, que de tudo que vivemos, o que não vivemos é que foi suplantado e que diante de tudo isso, a minha morte foi a melhor partida que já concedi. Com ela, deixei-lhes a certeza de que viva já não fazia falta e morta já não se lamentava. Certeza melhor não há do que a superação. Segredo esse que, se eu morresse amanhã, morreria sem saber como é ter esse prazer, o de superar.
Se eu morresse amanhã, minha filhinha lamentaria sem fim, mas um dia estaria ciente que durante todos os dias em que vivi após sua vinda, foi por ela que vivi, foi por ela que lutei, foi por ela que trabalhei, foi por ela que sorri, foi por ela que dei meu melhor, foi por ela que resisti até a última respiração, e se não continuei a respirar, foi por fraqueza e confesso, meu ponto fraco sempre foi o ponto final.
Se eu morresse amanhã, deixaria uma carta em forma de crônica para todos os que quisessem ler... O gosto daquela última crônica seria inigualável. Ao compô-la, minha garganta estaria travada, meu pescoço de tão rígido doeria, meus olhos mal enxergariam de tantas lágrimas, minha filha interromperia a escrita várias vezes pedindo biscoito de chocolate, sem imaginar que eu morreria amanhã...
Se eu morresse amanhã, meus livros seriam doados para o sebo da ribeira e cada leitor que por eles passasse a vista, veria que entre aquelas páginas se construiu uma mulher que se quis forte, que se quis poeta, que se quis romântica, que se quis revoltada, que se quis inquieta, que se quis militante, que se quis viva e que através dos livros e de alguns textos seus, permanecerá viva na memória de poucos. É no final das contas para esses poucos que eu escrevo antes que eu morra amanhã.
Às vezes o amanhã chega ainda hoje; às vezes demora tanto, às vezes nem amanhece...

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